O BOM BOLEIRO

Como todo boleiro que se preze, Odílio Augusto Laurindo ganha seu pão dando tratos à redonda, à gorduchinha, à pelota. E como Didi, Vavá, Garrincha, Zico ou Kaká, prefere esconder o nome de pia sob um apelido simpático: no caso dele, é João da Bola. Só que, ao contrário desses craques de ontem e de hoje, Odílio, o João, não é hábil com o balão. Não com os pés.Dia após dia, gomo após gomo, sua arte consiste em emendar entre si, com a maior categoria, hexágonos, pentágonos e triângulos para que cheguem ao formato esférico ideal. “Futebol nunca foi o meu fraco. Sempre preferi jogos mais suaves, como baralho”, ri, sentado em seu banquinho, costas apoiadas no muro de um estacionamento nas imediações da rua Santa Ifigênia, centro de São Paulo.As mãos são protegidas por luvas, para evitar que a grossa linha de náilon (“capaz de rebocar um carro”, ele diz) machuque a pele. Aprendeu a fazer bolas com um ex-presidiário que encontrou “derrepentemente”, numa tarde qualquer há 30 anos, na zona cerealista da capital. João era uma espécie de faz-tudo lá – de vez em quando ainda volta para “fazer um aquecimento” carregando caixas e sacas de arroz, feijão, batata. O homem ofereceu-lhe uma carcaça de bola murcha para que usasse à cabeça, como proteção. E ensinou-lhe o ofício.“Ele me explicou que esse é o único trabalho de artesanato que não tem teoria, só prática. Que eu olhasse ele confeccionar para aprender. Aprendi”, conta João, mineiro de Resplendor que se criou no Espírito Santo por causa de um chute do destino. Nada a ver com futebol: vítima do coice de um boi “recém-capado”, o pai do boleiro levou a família, João pequenino, para viver com o filho mais velho em terras capixabas.Hoje com 57 anos, veio para São Paulo em 1971, com 20. Foi carregador, metalúrgico e fez outros bicos até se tornar um craque da pelota. “Nunca gostei de trabalhar de empregado, gosto de ser livre. Então, para mim, essa profissão é boa.”João explica que existem três tipos de bola: de 12, 18 e 32 gomos. As que ele fabrica são de futebol de campo, salão, soçaite e handebol, de couro natural ou sintético, com preços que variam entre 20 e 80 reais. São bolas bonitas, de circunferência precisa, as quais ele gaba, sem falsa modéstia, não terem as linhas aparentes. As bolas produzidas industrialmente não são assim: a máquina de costura das fábricas não consegue dar o ponto transversal, que une as quinas dos gomos (geometricamente falando, os ângulos). As costuras se notam e a bola tem mais facilidade de se romper.É por isso que mesmo as bolas utilizadas por grandes times, produzidas pelas Nikes e Adidas da vida, são manufaturadas, costuradas por artesãos e artesãs em Sialkot, no Paquistão, onde se estima produzir mais de 60% das bolas de futebol do planeta. Em 1996, entidades de direitos humanos escandalizaram o universo da bola ao revelar que aos pés de Ronaldo e Beckham rolava um produto fabricado com o uso de trabalho infantil, hoje oficialmente proibido nas 200 fábricas de Sialkot.No Brasil, costurar bolas à mão é atividade educativa e de ressocialização entre os presos – como o sujeito que ensinou João. O Ministério do Esporte mantém, há dez anos, o programa Pintando a Liberdade, que ensina os presidiários de 20 estados a fabricar material esportivo: redes, raquetes de tênis de mesa, bandeiras, mochilas, uniformes e bolas de todo tipo, com destaque para as que contêm guizos em seu interior, usadas pelos atletas cegos e que são exportadas mundo afora.Mas, para uma bola sair boa, ensina João, técnica só não basta. “Faço com carinho, por isso fica perfeita. E como meu patrão é Deus, não tenho prazo para terminar”, diz. Normalmente, ele demora três horas para fazer uma bola nova. Recebe ainda, em seu carro-escritório, encomendas de restauro de bolas de estimação. Na semana passada era uma pelota de couro com mais de 30 anos assinada pelo rei em pessoa: Pelé.O forro dos gomos da bola autografada, em couro preto e branco, é de pano e está meio embolorado, o que me faz perguntar se as bolas mudaram com o tempo. “Sim, mudaram”, ele fala. “Para melhor. Hoje esse forro é de náilon ou fibra, mais resistente e ao mesmo tempo leve.” E começa a desfiar histórias sobre a descoberta do sal e do vidro para exemplificar como as coisas foram se aperfeiçoando, e bolas de futebol não são exceção.Onde ele aprendeu tanta coisa? “Sou curioso. Só comecei a estudar aos 28 anos, com o Instituto Universal Brasileiro e o Telecurso do Roberto Marinho, mas completei o 1º grau.” Faço outras perguntas que, pelo seu olhar, percebo que lhe parecem ridículas: por que algumas bolas pulam e outras não? “Porque as de futebol de salão, por exemplo, têm enchimento na câmara de ar para que não pulem muito. As de futebol de campo pulam mais porque não têm.” Ah, bom.Enquanto conversamos, curiosos se acercam ao velho Gol branco perguntando o preço das pelotas. Acabou de terminar uma de couro natural, verde e marrom, lindona: 80 pratas. Com as cores do Palmeiras, gomos triangulares (marca das bolas do Campeonato Paulista deste ano) e uma estrela em destaque, 70 reais. Em plena tarde de terça-feira, um policial gordo e mal-humorado, de uniforme e colete à prova de balas, chega com uma bola estourada em mãos, pedindo que João a conserte já, para jogar “agora”.Antes de usar o automóvel como vitrine, João da Bola andava com um carrinho de mão pelo centro, mas cansou da perseguição do “rapa”. Mora numa casa emprestada em Ferraz de Vasconcelos, município da Grande São Paulo, mas confessa ser no carro onde passa a maioria de suas noites. Usa o banheiro dos bares das redondezas e paga 3 reais para tomar um banho em algum dos hotéis baratos da região.Calcula ganhar cerca de três salários mínimos por mês costurando e restaurando. Fez mais bolas do que teve mulheres, diz, e jura que atualmente não dá bola para elas. Não tem ciúme do ofício (“Ensino a quem vier pedir”) nem inveja dos que usam a habilidade com as redondas para ganhar a vida de forma astronomicamente mais bem remunerada. “Ronaldinho não vive bem igual a mim. Posso dormir sem problema com a porta aberta e meu hotel não é de cinco, mas de várias estrelas”, dribla o mestre da bola, marcando um gol de placa.

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